A propósito da exposição individual do pintor Jaime Silva (n.1947), recentemente inaugurada no Fórum Cultural de Cerveira, a Fundação Bienal de Arte de Cerveira (FBAC) conta agora na sua coleção com duas obras do artista, pintor, natural do Peso da Régua e que na geografia do país se define entre a sua origem duriense, a sua formação académica na Escola Superior de Belas Artes do Porto (atual FBAUP), passagens por Guimarães ou Paris e a afirmação de um percurso profissional em Lisboa. “VIACRUCIS”, na utilização do termo em latim, remete-nos, simbolicamente, para o caminho percorrido por Jesus Cristo, do Pretório de Pilatos até ao Monte Calvário, onde teria lugar a crucificação. Numa aproximação à visão de Santo Agostinho pela busca incessante da verdade e com importantes referências à filosofia de Platão, em Jaime Silva o exercício da pintura surge num intervalo difuso e conturbado da impossibilidade de representação ou como representação do filho de Deus, na busca das múltiplas dimensões de uma mimesis correlacionada com um lado teológico e com a vinculação do pintor a Deus. A pintura, enquanto processo de estruturação de pensamento crítico sobre o mundo, articula o ver e o saber, dependendo da apropriação de conhecimentos e aprendizagens práticas, suportadas no devir do conceito, do espírito e na importância de entender as formas, reais ou imaginadas, de dentro para fora, ou seja, a partir do intangível, do indizível e do subjetivamente profundo.
Jaime Silva expõe, pela primeira vez, coletivamente, em 1975 e, individualmente, em 1976, ano em que o Grupo Puzzle (1975‐1981), uma verdadeira ‘contracorrente’ no contexto da produção artística e cultural que marca o país no pós 25 de abril de 1974, se apresenta publicamente no Porto, em janeiro, num jantar/intervenção na Galeria Alvarez II intitulado “Expectativa de nascimento de um Puzzle fisiológico com pretensões a Grupo”. Jaime Silva é um dos fundadores do grupo que tem como outros elementos conhecidos Albuquerque Mendes, Armando Azevedo, Carlos Carreiro, Dario Alves, Graça Morais, João Dixo, Pedro Rocha, Fernando Pinto Coelho e Gerardo Burmester, artistas de Coimbra e do Porto cujas ações coletivas haveriam de se repercutir na produção individual de cada um e, no caso de Jaime Silva, é evidente a dimensão mais política e disruptiva da sua figuração neste período, mantendo, contudo, a poética e a prática do gesto e da experiência da cor na procura de um entendimento da(s) forma(s) do interior para o exterior. Compreender, quase academicamente, o que há e o que é e como se torna imagem. Como se deduz pela referência à Galeria Alvarez, Jaime Isidoro, o também mentor da Bienal Internacional de Arte de Cerveira é responsável, de certa forma, pela aposta inicial na divulgação do Grupo Puzzle, o que dá mais um sentido à agora realização desta exposição individual de Jaime Silva.
Nas intermitências entre o desenho e a pintura, num período superior a 40 anos, “VIACRUCIS ou a pintura enquanto interrogação” reúne cerca de uma centena de trabalhos e procura, como se afirmou inicialmente, ser mais do que uma exposição antológica, considerando, inclusive que para um artista que tem sido capaz de refletir e apresentar o seu trabalho através dessa perspetiva evolutiva e histórica, interessa agora pensar tudo aquilo que está no intervalo da obra consumada: expor a interrogação, assumindo as suas inevitáveis deformações. Da figuração dos anos 70 do século XX, com algumas reminiscências da pop e da escola inglesa, a pintura eleva-se num expressionismo de gesto cada vez mais largo e violento, em variações de paleta fechada para as cores que nos levam à natureza enquanto fonte e força. Negando-se a abstração pura enquanto princípio, as composições cenográficas tornam-se detalhes, com incursões na semiótica dos símbolos que marcam a série “A casa na água” e “Um olhar sobre o palácio”, já do novo milénio, e se relacionam com as duas novas obras do espólio da FBAC. A cor parece que amadurece. Nos intervalos, nas reminiscências dos grandes suportes, há o desenho enquanto escrita e alfabeto. Negação da abstração? Automatismo psíquico? Nos “Cadernos de sombras” a resposta será afirmativa, surgindo a vastidão de trabalhos incluídos neste chapéu, como um desafio à experimentação livre a partir do sonho, do imediato, da angústia, da memória profunda, da fé e do devaneio, recorrendo a Bachelard[1]. Há ainda o desenho enquanto apontamento, repetição ou antevisão da semiótica da pintura que é maturidade. Também luz. Ainda os desenhos, virtuosos, de contornos limpos, de corpos nus que se apresentam no limbo entre o treino da mão e do olhar e uma forma de ver o Homem – pintura e desenho com preocupações humanistas, dir-se-ia. Os desenhos de corpos, potenciam a necessidade de um tempo para o encontro, a contemplação entre a imagem e o espectador, quem vê, a partir do museu como espaço sagrado, fuga da rua, contrariando a questão do divórcio inelutável, de que fala Yve-Alain Bois[2], da pintura e da arte contemporânea. A pintura sobrevive. Por isso se interroga. Jaime Silva afirma-a e parte sempre dela enquanto forma de ler o tempo e o espaço.
Dezenas de exposições coletivas e individuais. Centenas, talvez. Dezenas de países, vários continentes; obras que integram as mais prestigiadas coleções de arte contemporânea nacionais, públicas e privadas, prémios, menções e reconhecimentos e uma atividade que se expande para a escrita, para a docência, para a curadoria, para a gestão cultural, se quisermos, no infindável trabalho desenvolvido há décadas na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. Jaime Silva continua a interrogar-se e é a pergunta que marca o ritmo de VIACRUCIS, ainda que sem sacrifício, mas valorizando e evidenciando esta sua relação com Deus e com o que está para lá do visível, que (só) a pintura alcança (talvez).
« texto de Helena Mendes Pereira
[1] BACHELARD, Gaston – A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[2] BOIS, Yve-Alain – Painting as Model. Cambridge, MA: The MIT Press, 1993.