A mulher de Windisch pendura um vestido vermelho nas costas da cadeira. Arruma debaixo da cadeira um par de sandálias brancas de salto alto com presilhas finas. Amalie abre a bolsa. Com as pontas dos dedos põe sombra nos olhos. “Não exageres”, diz a mulher de Windisch, “senão as pessoas falam.” A orelha dela está no espelho. É grande e cinzenta. As pálpebras de Amalie estão azuis, cor de água. “Chega”, diz a mulher de Windisch. O rímel de Amalie é como fuligem, Amalie aproxima o rosto do espelho. O seu olhar é de vidro.[1]
Márcia Luças (n.1963) nasceu no Porto e fez a sua licenciatura em Artes Plásticas – Pintura na Faculdade de Belas Artes do Porto. Posteriormente, estudou Cinema de Animação e Design Industrial. São inúmeras as exposições coletivas e individuais a partir de 1985, como também as coleções públicas e privadas que integram obras suas. Participa nas Bienais Internacionais de Arte de Cerveira (BIAC), precisamente, desde 1985 e expôs na Galeria Alvarez, fundada por Jaime Isidoro (1924-2009), a partir de 1995. Em 1999 vence com “Mulher de ferro” (100x150x13 cm) o Prémio Revelação da BIAC, realizada entre 14 de agosto e 12 de setembro. “Mulher de ferro” trata-se de uma técnica mista em que a artista cria o suporte com um conjunto de garrafões de água de plástico, sobre os quais aplica pintura, integrando uma tábua de passar a ferro e iluminação. A “Mulher de ferro” de Márcia Luças poderia, assim, ser a mulher de Windisch, agarrada às obrigações sociais que se estendem à perda de identidade em função da prevalência do homem e aos estereótipos sobre a semiótica de cada um dos detalhes de apresentação pública de uma mulher. Contudo, a produção plástica de Márcia Luças não é apenas sobre a mulher e as questões de género, embora esta seja uma temática que marca o seu percurso. A obra que integra a coleção da Fundação Bienal de Arte de Cerveira é, aliás, exemplo do cruzamento entre uma dimensão conceptual, de natureza interventiva e cívica, se quisermos, com um conjunto de tendências do seu tempo como, por exemplo, a integração de materiais do quotidiano, provenientes do desperdício, como matérias criativas. O experimentalismo, como parte do processo de construção da narrativa, ou da interrogativa, marca de forma indelével o percurso desta artista, caracterizado por plasticidades tensas, sugestões figurativas que tocam as formas de representação da pop art e por uma heterogeneidade de técnicas, materiais e suportes, num campo de exploração que questiona o hermetismo da pintura de raiz académica, aproximando-a dos campos expandidos e objetuais. Márcia Luças é o reflexo de uma geração que arranca na segunda metade da década de 1980 com o regresso e questionamento da pintura, num contexto de Liberdade mas de direitos por cumprir. O seu trabalho é espelho das preocupações da sua geração, ocupando um espaço de originalidade que a aproxima de vários estilos artísticos, sendo possível defini-la num intervalo entre várias formas de ver. Um intervalo de destreza técnica e com um notável saber-fazer, próprio de todos aqueles que mergulham no exercício da tentativa-erro, em busca de uma qualquer verdade que só a Arte ajuda a apreender.
[1] MÜLLER, Herta – O homem é um grande faisão sobre a terra. Lisboa: Edições Cotovia, 1993. Página 81.