“Memória do tempo” (186x67x60cm) de Manuel Dias (n.1944-2018) foi apresentada no âmbito da XII Bienal Internacional de Arte de Cerveira, realizada entre 16 de agosto e 21 de setembro de 2003 e trata-se de uma parábola entre a ideia de mealheiro, em forma de cruz latina verticalizada, erguido em ferro, com uma intervenção que nos remete para a arte urbana, e vidro, o que nos permite perceber, no seu interior, a presença de notas e moedas. Os significantes de cada um dos elementos descritos são imediatos e esta obra de Manuel Dias possui uma mensagem de rasgada ação e intervenção, convite à reflexão, desafio de combate a uma concordância e apatia com o que nos rodeia. Segundo Karl Marx (1918-1983) em O Capital, “Chama-se dinheiro a uma mercadoria adotada e empregue, pelos seus possuidores, como equivalente de todas as mercadorias diferentes. (…) [e que] O preço das mercadorias ou a sua forma dinheiro é, como a sua forma valor em geral, uma simples forma, distinta da sua forma física e tangível.”[1] O dinheiro é, portanto, na sua origem, uma medida, uma quantificação, uma forma de operacionalizar uma troca, uma aquisição. Hoje, o dinheiro tornou-se no motor e no cancro da sociedade pós-moderna e mais do que justa moeda de troca pelo trabalho e por bens mais ou menos supérfluos, é a mira dos ambiciosos e a desculpa dos corruptos. Plasticamente, “Memória do tempo” difere de “Ardina” (1992), colocado na Avenida dos Aliados, no Porto e do “Monumento a 25 de Abril” (1998), concebido em mármore verde de Viana para Espinho, terra natal do autor. “A minha verdadeira missão é semear a revolução por onde quer que eu passe”, escreveu Richard Wagner (1813-1883), numa espécie de frase resumo do que enuncia em A Arte e a Revolução, de 1849. Talvez seja também este o elemento comum às obras de Manuel Dias: o da importância da Arte ser mensagem e transformação. No demais, Manuel Dias desenvolveu muito cedo o interesse pela adoção de materiais não tradicionais ao campo da escultura mais académica, onde inicialmente se forma.
Manuel Dias começa por frequentar o curso de Pintura (1957-1961) e a Secção Preparatória de admissão à Escola de Belas-Artes do Porto (1961-1962), na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, tendo. Em seguida, frequenta o curso de Escultura na ESBAP (atual FBAUP) até ser incorporado no exército em 1967 mas, como muitos da sua geração, recusou a integração e procurou refúgio na Europa. Primeiro passou por Paris, fixando-se depois em Haia e Haarlem. Vivendo na Holanda com o estatuto de refugiado político, beneficiou de uma bolsa de estudo, teve oportunidade de trabalhar com prestigiados escultores e iniciar um percurso de exploração de diferentes materiais, nomeadamente cobertores, esponjas, colas, poliésteres, plásticos, cuja aplicação se reflete na sua produção artística plural e multifacetada. No período em que esteve na Holanda, produziu várias obras que podemos encontrar no espaço público daquele país. Após a Revolução dos Cravos regressa a Portugal onde combinará sempre a atividade docente (inclusive na FBAUP) com a da escultura, somando ao seu percurso bolsas de estudo e investigação, prémios, exposições individuais e coletivas e presença em diversas coleções públicas e privadas.
De natureza interventiva e revolucionária, a escultura de Manuel Dias é assim marcada por um certo idílico associado à Arte e ao seu poder enquanto educação e forma de comunicação. Richard Wagner ajuda-nos a compreender a sua utopia e a força conceptual das suas plasticidades, inclusive pela dimensão teatral das suas composições, campo adjacente, aliás, a toda a boa escultura.
No dia em que a sociedade dos homens tiver evoluído no sentido da beleza e da nobreza de carácter – coisa que não chegaremos a atingir apenas por acção da arte, mas pela qual teremos que lutar esperançadamente em unidade com os grandes movimentos revolucionários que inevitavelmente se avizinham , as representações teatrais hão-de ser os primeiros empreendimentos sociais em que já não terá que estar presente a noção do dinheiro e do lucro. Porque, se a educação, de acordo com os pressupostos atrás observados, ganha cada vez mais um carácter artístico, chegará o dia em que seremos todos suficientemente artistas para nos unirmos, precisamente como verdadeiros artistas, não em torno de um objetivo secundário e lucrativo, mas sim, numa actividade a um tempo livre e colectiva, em torno do principal. E o principal serão exactamente os assuntos relativos à arte.[2]
« Texto de Helena Mendes Pereira
[1] MARX, Karl – O Capital. Lisboa: Edições 70, 2017. Páginas 249 e 250.
[2] WAGNER, Richard – A Arte e a Revolução. Lisboa: Antígona, 2000. Páginas 108 e 109.